segunda-feira, 21 de julho de 2014

Continuação do post anterior

Três tristes tigres (o título já dá a idéia da narrativa: refere-se a um trava-línguas famoso) é um romance com vários personagens que perambulam por La Rampa, o bairro boêmio de Havana, entrando e saindo de cabarés, mantendo longos diálogos e envolvendo-se na noite pré-castrista entre fantasias e desventuras de jovens aventureiros e intelectuais (Códac, o fotógrafo, Bustrófedon - o homem dos jogos verbais e mentais, Arsenio Cué, Silvestre e Eribó). As influências de Cabrera Infante são Lewis Carroll, James Joyce, Sterne e Petrônio. Este último pelo deambular dos personagens. Se Petrônio faz de Roma seu campo de atuação, Cabrera Infante recria sua Roma decadente na Havana do ditador Batista. Surge, por exemplo, o cabaré Tropicana, que um dos personagens diz ser ali “nuestro foro romano del canto y la danza y el amor a media-luz”.
Romance fragmentário, com várias vozes, de um humor exuberante e uma constante brincadeira com as palavras (um dos momentos intelectualmente mais instigadores é quando Cabrera Infante parodia, com muita graça, os mitos literários cubanos escrevendo à maneira, entre outros, de Alejo Carpentier e Lezama Lima). As narrativas em primeira pessoa mostram uma vivacidade que as traduções não conseguem recriar. Cabrera dizia que o espanhol falado no livro é um argot (gíria) de um determinado grupo de uma determinada área (La Rampa) de Cuba.
O livro é composto por pequenos livros-narrativas como mosaicos menores inseridos num outro maior. Grosso modo, temos: o livro da cantora em “Ella cantaba boleros”; os pastiches e os jogos verbais de Bustrófedon; a sessão de análise em que a voz de uma mulher somente aparece velando a voz do analista e, entre outros, a “Bachata”, quando dois personagens, Arsenio Cué e Silvestre, andam de carro pelo Malecón. Há uma certa euforia da velocidade, os diálogos - recheados de paradoxos que lembram Lewis Caroll - são sobre mulher, a vida, o passado, a música, Cuba e muitos outros temas discutidos com erudição e humor. A oralidade é o forte do romance. É ela que subverte o beletrismo e que instaura um clima de paródia, de fluxo de consciência feito, ao contrário do humor irlandês de James Joyce, com a ginga e bossa dos cubanos - essa gente que também tem candomblé, uma grande população negra e a música mais contagiante do Caribe. Os fragmentos da narrativa que compõem o romance dão unidade através da heterogeneidade, na falta de perspectiva de seus protagonistas, na intermitência das falas - cria-se uma substância, um corpus organizado a partir da desordem.
Na introdução do livro, o autor mesmo adverte: este livro está escrito em cubano. “Es decir, escrito en los diferentes dialectos del español que se hablan en Cuba… predomina como un acento el habla de los habaneros y en particular la jerga (gíria) nocturna, que, como en todas las grandes ciudades, tiende a ser un idioma secreto”. Três tristes tigres é, ao mesmo tempo, regional e universal. Utiliza-se da gíria, da descontrução da linguagem falada, dos períodos longos a refletir o mais fielmente possível a confusão mental dos personagens, faz uso dos temas das conversas e preocupações dos protagonistas expressas através de diálogos e atitudes que mostram uma faceta universal e, concomitantemente, registram uma marca essencialmente cubana.
A oralidade nasce do registro da fala comum, do flash de um momento verbal de um personagem. Ela não é urdida paulatina e medidamente construída. Não está dentro do espectro da forma impessoal e distanciada do estilo realista e naturalista. O narrador se diluiu (ou apenas se omitiu) no próprio personagem. Ou mesmo, o narrador - tal qual o entenderíamos como um contador de histórias - desapareceu. O fragmento então vem por conta dessa ausência; são retratos falados, verborragia dos autores, partes de um discurso, cacos de falas, instantâneos verbais. E é nele, no alongamento, no registro dessa oralidade, e não fora dele, que ocorre a fragmentação última, a fragmentação da palavra, manipulando a unidade mínima de significação, o morfema, numa combinação com outros até formar um conjunto deles que gráfica ou eufonicamente se assemelha a uma outra palavra, mas já agora com sentido diferente. Bustrófedon é o grande personagem manipulador deste tipo de linguagem: “Lo único que sé es que yo me llamaba muchas veces Bustrófoton o Bustrófotomatón o Busnéforoniepce, depende, dependiendo y Silveste era Bustrófenix o Bustrofeliz o Bustrófitzgerald (p. 207 da edição da Seix Barral espanhola).
Embora seja Códac que fala, o procedimento é tipicamente de outro personagem: Bustrófedon. É certo que Bustrófedon é quem leva, se não à caricatura esse procedimento, ao menos à exacerbação. E entenderíamos esse fato pelo motivo de que, sendo ele o personagem diapasão, profissão de fé, organizador do tom romanesco de Três tristes tigres, seria compreensível entendê-lo como quase um demonstrador daquilo que é norma e diluição de sua proposta. Nem sempre os teóricos, ou os precursores, ou mesmo aqueles que apontam uma conduta estética, são os mais exacerbados. São mesmo os diluidores, aqueles que mais caricaturam, cacoetizam procedimentos formais. São o mais das vezes os que, num maneirismo tosco, acentuam o que era episódico nos outros.
Aqui a diluição se processa no interior do romance. Parte de um mecanismo operado no corpo mesmo do livro. E as influências e transposições acontecem não de escritor para escritor, mas de personagem para personagem. A atomização da renovação diz respeito a um procedimento formal último. É a vanguarda abrangendo vários níveis, procurando, até às últimas conseqüências, alcançar o espaço mínimo e fronteiriço da literatura. Depois desse estágio se desfaz (o suicídio) não só a literatura, já que sem palavra não há literatura, e a própria palavra. Se pensamos, contudo, que esse expediente de Cabrera é um recurso para alcançar o humor e a blague, não invalida a nossa perspectiva crítica, pois que, mesmo esse fim - o da paródia -, tem como objetivo a reconstrução através da destruição.
Para Freud, em seu O chiste e sua relação com o inconsciente, o mecanismo de aparecimento do chiste pode assim ser resumido: o deslocamento, erro intelectual, contra-sentido, representação indireta e antinômica. O chiste origina-se, pois, de um procedimento mental que envolve uma inversão. Pelo seu contrário, a par de uma semelhança, opera-se o jogo verbal. O princípio de inversão e recolocamento (já que não há somente destruição, mas um reconduzir de fonemas e ou sílabas eufonicamente parecidas) mostra um desmontar e reconstruir. Desmontar uma frase - ou literatura - bem composta, comportada, solene. E reconstruir em cima de um modelo que aponta para uma poética.
Pode-se considerar esse procedimento de Cabrera Infante apenas um jogo formal ou a apropriação de uma técnica literária devedora a James Joyce. Mas é de se supor que nenhuma técnica utilizada seja vista apenas de uma forma mecanicista. Por trás de todo um fazer, de um uso, de um instrumento, há uma intencionalidade - não só do autor, mas também do narrador, do personagem e do texto. Ora, em Três tristes tigres essa intencionalidade está apontada nos dois últimos, pois o primeiro levaria a uma crítica subjetiva e impressionista e o segundo se ausenta de cena ou se funde ao penúltimo.
Trabalhar com o chiste é trabalhar com o inconsciente, o sonho, a linguagem do sonho. E Cabrera, ao contrário de outros autores que se utilizam o onírico em outros planos como a trama, o absurdo da vida, as imagens fantásticas e cenas insólitas, Cabrera atuará fundamentalmente nesse microtização do espaço da renovação.
A microtização do espaço da renovação está ligada a um instrumento riquíssimo e dorsal para o romance Três tristes tigres que é a oralidade. A microtização está presa à oralidade antes por um projeto comum de apreensão da realidade lingüística (e poética) de Havana do que por um procedimento formal e erudito. Certamente as influências são notórias (Joyce, Sterne e Lewis Carroll). Mas a oralidade, determinante de todos os outros procedimentos, tem uma origem mais imediata e ordinária: a realidade cubana, a realidade de La Rampa, a realidade verbal e humana da ilha.
O suicídio de Bustrófedon, como personagem, não altera em nada a trama romanesca de Três tristes tigres. Na verdade, Bustrófedon é um personagem ausente. Não aparece no livro, senão através dos relatos de outros personagens. E sua existência é tão à margem da história que, à primeira vista, fundamentalmente, o seu não-aparecimento não representa nenhuma mudança formal. Numa leitura superficial, Bustrófedon apenas representaria o lado mais bufão, lúdico e jocoso de todo o livro. Luís Gregorich assinala em artigo para o livro Três tristes tigres, obra abierta (Madrid, Fundamentos, 1974):
Floren Cassalis, aliás “Bustrófedon”, personagem-limite do romance, deformador, paródico, transformador, até os extremos da magia e da falsificação, dos usos cotidianos e prováveis da língua, amante das definições falsas, dos jogos de palavras (...) representa o pólo oposto, em aparência, do programa coloquial de Cabrera Infante. (p.129-155)
Os textos paródicos escritos por ele - o pastiche dos autores cubanos sobre a morte de Trotsky e a história do bastão de Mr. Campbell - apareceriam não gratuitamente, mas apenas para reforçar o tom de inversão, graça e paródia de todo o romance.
Na verdade, isso não acontece. Para começar, Bustrófedon é o escritor que se recusa a escrever - deixa apenas relatos - jogos verbais gravados numa gravação. Depois, observa-se que toda a construção vocabular empreendida no livro é uma vertente atenuada das propostas de Bustrófedon. Ao mesmo tempo, a influência de Bustrófedon sobre Arsenio Cué, segundo relato de Códac, e também sobre este último, é de sobremaneira forte. Uma influência transformadora. É com a morte de Bustrófedon (que Códac nos transmite em meio aos “vômitos de palavras” e “vertigens” que identificava Bustrófedon) que se dá um dos raros, senão o único momento verdadeiramente deceptivo, disfórico. É interessante observar o que Códac fala dele, mesmo quando se refere ao tumor cerebral que o matou e “le hacía decir esas maravillas y jugar com las palabras y finalmente vivir nombrando todas las cosas por otro nombre como si estuviera, de veras, inventando idioma nuevo” (p.222).

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